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Alice

2024

Em uma tarde, Alice estava voltando do mercado com sua mãe quando um homem passou por elas na calçada. Em questão de segundos, sentiu algo tocar seu corpo e virou-se instintivamente. “Será que aquilo tinha realmente acontecido?” Olhou para trás para tentar confirmar sua desconfiança, foi então que percebeu que o homem carregava uma sacola, e o que ela sentiu era apenas o esbarrar da sacola em seu corpo. “Ufa” foi o que falou baixinho para sua mãe não escutar. Enquanto se sentia aliviada por ter se enganado, a menina pensou quando suas desconfianças iriam passar. Depois de ter sido violentada, Alice vive em alarme, qualquer situação que a traga desconfiança é motivo para paralisá-la. Os gatilhos surgem a qualquer momento mas há alguns lugares que a trazem de volta às lembranças que ela luta para esquecer: a rua, o mercado e a casa da avó. 

 

Sua avó nunca acreditou que o filho pudesse ter cometido uma violação contra a própria sobrinha ou qualquer outra mulher, a negação impedia que qualquer um da família tocasse no assunto e aquilo criou uma barreira com a neta e os outros filhos. Apesar da tentativa de sua avó em abafar o caso, nada era capaz de fazer com que Alice não lembrasse a repulsa que sentiu.

2017
 

Neste ano, o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, registrou 3.332 notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes no estado de São Paulo. Violações contra crianças e adolescentes lideram a lista de denúncias, como ocorre desde a criação do canal. Foram contabilizadas 130.224 crianças e adolescentes vítimas de violações em 2017.

Em Julho de 2017, Alice tinha recém completado 15 anos e estava embarcando para sua viagem de férias. Fazia três anos que estava morando com a mãe em São Paulo e em todas as férias escolares ela voltava para Paraíba para visitar seus avós e sua mãe de criação.

Fernanda foi quem a cuidou quando sua mãe veio em busca de trabalho em São Paulo. Ela e suas filhas foram a base familiar de Alice até os 12 anos. Conviver por tanto tempo e ter o laço cortado repentinamente doeu em ambos os lados e elas usavam as visitas esporádicas para matar a saudade. Alice não poderia deixar de visitá-la durante a viagem daquele ano. O único empecilho era a distância, a cidade, era cerca de 260 quilômetros da casa de sua avó onde estava hospedada. 

Vendo a menina aflita por não saber como chegaria até lá, seu tio Nil ofereceu uma carona de moto. Um outro tio já tinha se oferecido para levá-la, mas como a moto era a forma mais rápida, a menina aceitou sem ver nenhum problema. Eles poderiam ir e voltar no mesmo dia, sem a necessidade de um lugar para dormir.

Ela nunca foi muito próxima do Tio Nil, sempre o chamou pelo apelido e nem lembrava qual era o nome verdadeiro dele. O esquecimento não era incomum já que sua mãe tinha 11 irmãos. Com uma família tão grande, não tinha como ter proximidade com todos e essa era a situação com o tio Ivanildo.

 

No dia seguinte, antes de embarcarem no caminho, passaram na casa da namorada do tio. A parada não demorou muito, apenas o tempo de avisar a programação do dia para não preocupá-la. A estrada estava livre, chegaram de forma rápida e Alice logo foi recepcionada por todos da casa com muito carinho.

 Fernanda e a família já conheciam o tio que também foi recepcionado, não tão calorosamente. Eles chegaram às 15 da tarde, almoçaram e passaram o resto da tarde. Para Alice, o momento foi tão especial que o tempo passou voando. Apesar de já ter se acostumado com São Paulo, Alice não tinha muitas pessoas próximas. Estar com sua família de criação trouxe uma sensação de conforto tão boa que até esqueceu da solidão dos últimos tempos.

45% das mulheres dizem que já tiveram o corpo tocado sem seu consentimento em local público, apenas 5% dos homens admitem já ter feito isso.

O assédio sexual acontece sempre que houver uma manifestação sexual ou sensual não consentida pela pessoa a quem essa manifestação se destina. Pode abranger cantadas grosseiras, ofensivas, ou situações em que há intuito de intimidação e conotação sexual, podendo ou não haver contato físico. Portanto, o assédio nunca se confunde com a paquera, por exemplo, em que há uma relação mútua e uma intenção recíproca de aproximação.

- Silvia Chakian de Toledo Santos, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Ao fim do passeio, Alice subiu na garupa e foi embora com seu tio. Apesar do cansaço, a jovem seguia atenta com seu tio pilotando de forma acelerada no escuro da noite. O caminho não era muito movimentado naquele horário e a região era cercada por muitos terrenos abandonados.

 

Com as mãos apoiadas no banco, não estava nem na metade do trajeto e Alice começou a sentir algo tocando sua perna, rapidamente direcionou seus olhos para ver o que era. Era a mão de seu tio. A mão direita que deveria estar direcionando o guidão estava em sua perna.

 

Por um momento, Alice tentou justificar o ato, acreditando que fosse um movimento não intencional, provavelmente ele foi passar a mão em sua própria perna e acabou acidentalmente chegando na dela. Mas durante o tempo que passou já daria pra ele perceber que não se tratava do próprio corpo.

 

A mão foi subindo e o movimento se estendendo até a metade da coxa só naquela hora a jovem percebeu do que se tratava. Parece que o instinto da mulher sente é mais aguçado para reconhecer esse tipo de situação. Mas na verdade, nós somos treinadas a vida toda por nossas mães, tias, avós para saber quando é uma situação de abuso. Às vezes até o esbarrar em uma sacola nos deixa em alerta.

 

Em poucos segundos se passaram mil pensamentos:

“O que ele tá fazendo? “Por que ele tá fazendo isso?” “Ele não tem namorada?” “O que tem demais no meu corpo?”

 

Paralisada pelo medo das respostas para suas perguntas, Alice apenas foi empurrando seu corpo para trás tentando se livrar da mão que a invadia. Quase na ponta da moto e nada dele soltar. Mais questionamentos surgiam: “O que será que ele quer?” “Será que eu tiro a mão dele?” “Ou eu finjo que não tô sentindo?” “Estamos em um lugar cheio de mato, e se ele parar a moto e fazer algo comigo?” “Nem sei direito onde eu tô” “Falta muito pra chegar?”  

Cada vez mais o matagal ao seu redor lhe acovardava até que em um breve impulso Alice pegou a mão dele e tirou de seu corpo. O medo invadiu seu corpo por pensar que ele poderia ter ficado bravo. Ele poderia revidar e fazer o que quisesse com ela naquele lugar vazio.

A viagem continuou como se nada tivesse acontecido. Chegaram em casa normalmente e nenhuma palavra foi trocada sobre o ocorrido. Durante a noite as recordações mal deixaram ela dormir, até porque, ele estava sob o mesmo teto, há poucos metros de distância. 

No dia seguinte, Alice quis ir para casa de uma amiga de infância e ficou por lá pelos dias que sobraram da viagem. 

Mesmo no ambiente acolhedor do café, o peso da sua história era palpável. Outras mulheres que estavam no local para um simples encontro de amigas jamais imaginariam o teor da nossa conversa. 

Alice retornou para São Paulo e não teve coragem de contar o que aconteceu para sua mãe. A menina foi tomada por um misto de vergonha e medo das reações que receberia e decidiu que não iria contar para ninguém. Era um tio que ela mal via durante todo o ano, então não tinha razões para se preocupar. ​​​​

Alice"Nós fomos, visitamos minha mãe e na volta..."
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Com a volta para casa pensou que pudesse esquecer o evento mas não conseguiu. Por mais que tentasse ocupar sua mente com as tarefas de casa e da escola, seu corpo a lembrava da sensação de angústia. É engraçado pensar como uma situação de poucos minutos pode ficar ecoando por tanto tempo depois.

Nos meses seguintes, a menina ficou doente, problemas intestinais a perseguiram, sua imunidade baixou tanto que também contraiu herpes zóster. Sua mãe se preocupou com a queda repentina da saúde da filha e as duas tentaram investigar a causa. Sem nenhum resultado conclusivo, Alice chegou à conclusão de que poderia ser emocional, sequelas da violência que estavam se manifestando através de seu corpo. 

"A violência traz consequências para a saúde mental e física.

Ela pode causar problemas como depressão, ansiedade, pensamentos suicidas, anedonia (perda da capacidade de sentir prazer

ou de se divertir), medo e desinteresse por tudo"

- Prof. Dr. Maycoln Teodoro,   Diretor da Sociedade Brasileira de Psicologia

Alice"Aí minha mãe queria matar ele ..."
00:00 / 00:27

O tempo passou e logo chegaram as férias do próximo ano. Daquela vez Alice decidiu se hospedar na casa de uma amiga. Depois do último ano, ela não queria de jeito nenhum ficar na casa da avó. E foi durante a viagem que ela se abriu pela primeira vez. Ela contou para a amiga a situação que viveu com o tio no ano anterior. 

O desabafo não ficou em segredo, com um desejo de que fosse feito algo, a amiga revelou toda a história para a mãe de Alice. Quando a mãe soube foi tomada por raiva e ligou para família querendo satisfações sobre a descoberta. 

Além da saúde mental, a física também sofre consequências diretas ou indiretas. "Por exemplo, a privação, baixa qualidade e excesso do sono propiciam efeitos hormonais que afetam vários sistemas. Além de problemas alimentares, dependências e abusos de substâncias e de álcool, disfunções gastrointestinais, afecções dermatológicas, problemas ortopédicos e posturais, etc.

​​Luiz Cuschnir, psiquiatra e coordenador do Grupo de Gêneros do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Em pouco tempo todos os irmãos sabiam, não foi preciso muito para descobrir outros casos de assédio que Nil fez na cidade. Os tios descobriram que ele observava uma criança, que morava na mesma região, e mostrava sua genitália. Os irmãos dele ficaram indignados e apoiaram os pais da criança quando foram abrir um boletim de ocorrência. Apesar de muitas pessoas alertarem, a avó de Alice não acreditava em nenhuma das situações, ela pensava que estavam distorcendo ou aumentando os fatos. Apesar da revolta dos filhos, ela nunca deixou que as alegações chegassem até seu marido. Alice afirma que seu avô é um homem muito rígido e por isso a avó sempre acobertou os erros dos filhos. 

Uma pesquisa da organização “Think Eva” mostrou que cerca de 30% das vítimas relatam diminuição na confiança em si e nos outros e o auto-isolamento após o episódio de assédio – o que pode ser consequência da agressão, mas também da denúncia. O Tribunal Superior do Trabalho reconheceu que transtornos desenvolvidos por conta do assédio sexual também podem ser considerados doenças ocupacionais

Mesmo com a verdade revelada, havia uma barreira emocional impedindo que Alice conseguisse falar com sua mãe. Foram 5 meses para que elas conseguissem sentar frente a frente e ter uma conversa aberta sobre a situação.

Em 2019, a irmã de Alice decidiu ir morar sozinha. Isabela se mudou para Embú das Artes e Alice estava a ajudando com as tarefas e organização da casa. Era uma segunda-feira e as duas foram até o mercado fazer as compras para a casa nova. 

As irmãs tinham acabado de chegar ao mercado. Era uma tarde muito quente e ambas estavam com roupas frescas. Alice de saia e sua irmã de shorts. Alice empurrava o carrinho enquanto Isabela pegava atentamente os itens nas prateleiras. 

2019
 

Os impactos de um abuso podem acompanhar a vida dessas pessoas por anos: segundo estudo da American Association of University Women, 38% das mulheres que sofreram assédio sexual no trabalho deixaram o emprego muito antes do planejado e 37% afirmam que essa violência impediu avanços na carreira.

O local era grande, possuía corredores largos no estilo atacadista. Não havia tantas pessoas naquele horário, mas era possível ver uma ou outra passando com as compras. Ambas estavam sem pressa, era mais uma atividade rotineira. Ainda no começo das compras, um segurança começou a vir rápido na direção delas, sua expressão indicava que estava acontecendo algo errado então as duas passaram a acompanhá-lo com o olhar. Ele passou reto e abordou um homem a uns 10 passos delas, o segurança disse para o homem que o viu fazendo uma atividade suspeita. Após pressioná-lo e não ter nenhum retorno, o segurança se direcionou para Alice e perguntou ¨Você não viu ele tirando foto debaixo da sua saia?¨

Ela disse que não, mas antes mesmo da resposta o segurança já estava imobilizando o homem. Assim que foi contido, o segurança guiou o homem para longe dali. As irmãs ficaram chocadas, a única reação foi largar o carrinho para trás e seguir o segurança. Elas observaram o segurança levar o homem até a administração do mercado, era possível ouvir as ofensas e o barulho de socos e chutes do segurança e possivelmente outros colegas.

Depois de uns minutos o segurança saiu do local reservado e focou sua atenção nas duas. Ambas ouviram atentamente ao segurança explicar a necessidade de acionar a polícia e fazer um b.o.  

6 em cada 10 mulheres que foram vítimas de violência praticada por homens não procuraram autoridades de segurança para registrar o crime.

- Instituto DataSenado e o Observatório da Mulher contra a Violência

Para a pesquisa, 21,7 mil brasileiras foram consultadas, 30% afirmam já ter sofrido algum tipo de violência doméstica ou familiar, e destas, apenas 40% registraram os episódios junto ao poder público.

Dentre as brasileiras que, a princípio, responderam nunca terem sofrido violência, 29% se reconheceram vítimas após ouvirem dos entrevistadores explicações sobre os diferentes tipos deste crime. Os exemplos incluíam violência patrimonial, verbal, psicológica 

Psicóloga e Líder nacional de Psicologia do Projeto "Justiçeiras"

Naquela altura do campeonato, Alice já tinha compreendido a violação sofrida e estava em prantos, sendo consolada pelos braços da irmã. Quando seu tio a violentou ela não conseguiu chorar, o medo de demonstrar algo que chamasse a atenção de sua família fez com que internalizasse seus sentimentos. Mas nessa circunstância não havia nada a esconder, a violação foi em um ambiente público e todos que estavam lá viram. Usar uma saia nunca a fez sentir tão exposta quanto naquele dia.

No meio tempo, a equipe do mercado foi atenciosa, fizeram Alice se sentar e deram água para que ela pudesse se acalmar, mesmo assim quando a polícia chegou ela ainda chorava muito. Ao ouvir o relato do segurança, os policiais pediram que o homem desbloqueasse o acesso ao celular e foi feito. No dispositivo eles encontraram a prova de que ele realmente estava tentando filmar o corpo de Alice sem sua permissão. Além disso, tinham várias filmagens de outras mulheres, puderam ver que todas também estavam de saia e em locais públicos, como farmácias e lojas.

Através das provas, eles encaminharam o assediador para a delegacia. Alice e sua irmã também foram para o local em outra viatura. No meio do caminho Alice percebeu que estava sem sua identidade, afinal ela só tinha ido fazer compras no supermercado. Os policiais se prontificaram a passar em sua casa para buscar o documento. 

Depois do trajeto do mercado até sua casa, finalmente chegaram à delegacia. Apesar de todos os policiais terem sido muito compreensivos, o ambiente repleto de homens não era muito confortável para as irmãs, por isso, elas não se desgrudaram em nenhum momento.

No local, Alice teve que enfrentar mais uma barreira: prestar seu depoimento. Apesar do homem ter sido pego no flagra, era necessário ouvir a perspectiva dela e de sua irmã.​

Ao entrar em uma sala para prestar seu depoimento se deparou com mais um homem, o delegado. Ele já tinha sido informado da gravidade da situação e foi solícito com as irmãs, tentando acalmá-las para que se lembrassem de tudo que aconteceu.

Ainda dentro da sala do delegado, Alice pode ver a chegada da esposa do homem que a violou. Ela imaginou quem poderia ser e teve sua dúvida confirmada quando ouviu a recepcionista explicando a situação, pode ouvir a  mulher dizendo “é mentira, não é meu marido, com certeza foi um engano”. Depois 

A esposa só acreditou na situação quando adentrou a delegacia e viu que seu marido realmente estava lá. Mesmo assim, ela ainda esperou que ele fosse liberado para que seguissem juntos para casa. 

No mesmo ano, na França, Dominique Pelicot foi preso pelo mesmo crime: filmar debaixo da saia de três mulheres em um supermercado. Ao acessar o celular de Dominique, a polícia francesa descobriu milhares fotos e vídeos em que o homem estuprava uma mulher com diversos homens diferentes. A mulher era Gisele Pelicot, sua esposa. 

Ao longo de dois anos de investigação, a polícia constatou que o homem dopou sua esposa por mais de 10 anos para violentar seu corpo com outros homens. Existiam mais de 20 mil fotos e vídeos dos estupros e cerca de 70 homens aparecem nos arquivos ao lado de Dominique. 

Ao voltar para sua casa acompanhada da irmã, Alice foi recebida com inúmeras perguntas de sua mãe. Ao expor todos os detalhes, as duas voltaram para a mesma sensação de impotência que tiveram anos antes. A única coisa que poderiam fazer era esperar o processo avançar, o delegado informou que em alguns dias ligariam para atualizá-la sobre os próximos passos.

Os dias se passaram e nada da ligação, apesar do desejo de punição, Alice não persistiu. Ela não foi atrás para saber o status do b.o e até hoje não sabe exatamente o que aconteceu, imagina que o processo foi arquivado e tem certeza que o homem segue em liberdade. 

Em 2022, um levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU) mostrou que 2 em cada 3 processos de investigação por assédio sexual na administração pública federal foram concluídos sem penalidade.

Os dados revelam que 65,7% (432) das investigações já finalizadas foram encerradas sem qualquer punição aos acusados. As demais resultaram em advertência (41), suspensão (90) ou demissão (95) do agressor.

Advogada Especialista em violência de gênero e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas 

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